Rabindranath Tagore e a Música Folclórica de Bengala


Marcus Straubel Wolff
doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados
em Comunicação e Semiótica da PUCSP


Um dos aspectos de meu projeto de doutorado diz respeito à produção musical de Rabindranath Tagore ( 1861-1941 ), escritor e músico indiano mais conhecido no Ocidente por ter recebido o prêmio Nobel de literatura em 1913. No entanto, pretendo revelar uma outra faceta do celebrado autor de Gitanjali: sua produção musical, ou melhor, o estilo musical que criou e que veio a ser chamado de "rabindra sangita".
O meu projeto de tese de doutorado chama-se "Música, Criação & Identidade Cultural em Mário de Andrade e Rabindranath Tagore" e como o título sugere, é um estudo comparativo das concepções desses escritores e pensadores da cultura. A despeito do fato de terem vivido em contextos culturais e sociais distintos, podem ser aproximados enquanto escritores interessados em coletar canções populares e tradicionais, que tinham nessa atividade o coentro de seus projetos estéticos. Pois tais projetos, formulados a partir de heranças coloniais, fazem parte de um processo de contestação à hegemonia cultural européia identificado por Walter Mignolo e por Homi Bhabha com a pós-colonialidade.
Utilizo esse conceito de razão pós-colonial, de situação pós-colonial, para lidar criticamente com os discursos elaborados por "meus" escritores em seu progressivo afastamento do eurocentrismo. Pois tanto o brasileiro Mário de Andrade, quanto o indiano Rabindranath Tagore elaboraram discursos e criaram obras que questionaram a lógica da razão colonial e os preconceitos etnocêntricos que informam o olhar e a audição dos centros culturais hegemônicos sobre as culturas ( e as músicas ! ) dos povos colonizados.
Não vou me ater agora às concepções musicais de Mário de Andrade e a seu projeto de nacionalizar a nossa produção musical. Vou apenas, antes de tratar de Tagore, lembrar que Mário também procurou revalorizar as tradições nacionais, tendo-se dedicado aos estudos etnográficos e etnomusicológicos.
A partir de um certo momento de suas trajetórias, ambos sentiram necessidade de ir além do modelo de cultura proveniente da Europa ó ao qual associavam os conceitos de "modernidade" e "civilização". É bem verdade que Tagore em sua juventude identificava-se com a atitude da elite culta de Bengala favorável à ocidentalização. Segundo o próprio escritor indiano, essa elite nutria um sentimento de revolta contra as rígidas convenções sociais do país, preferindo o ideal de civilização trazido e representado pelos ingleses. Assim, com a aquiescência da elite que detinha o discurso cultural, ocorreu um processo de ocidentalização em que os valores, os cânones artísticos, as idéias políticas e religiosas trazidas pelos conquistadores europeus começaram a ser assimiladas diretamente.
Todavia, alguns intelectuais indianos, deparando-se com os problemas políticos e sociais causados pelo domínio britânico, sentiram a necessidade de rever suas posições. Rabindranath Tagore, membro de uma família de proprietários de terras conhecida por seus talentos artísticos, afirmou ter se sentido obrigado a sair do campo da apreciação literária ó em que tinha os ingleses em alta consideração ó para conseguir realizar sua crítica à civilização européia. Em "Crisis in Civilization", reportou-se a esse momento de ruptura declarando : "Enquanto estive perdido na contemplação do grande mundo da civilização, não pude nem remotamente imaginar que os grandes ideais da humanidade acabariam em tal caricatura cruel". ( TAGORE, 1984 ).
O domínio britânico foi considerado, a partir de então, como asfixiante, injusto e opressor, baseando-se apenas na superioridade bélica e tecnológica do imperialismo inglês. Para ele, é esse sistema imperialista que arrasta o povo indiano para o que considera a "desordem da barbárie", isto é, para os atos de terrorismo e violência que condena.
Denunciando a injustiça social do domínio britânico sobre seu país, Tagore dissocia o conceito de civilização do modelo europeu ó não pode mais considerar civilizado um povo que é indiferente ao sofrimento do povo oprimido. Em 1905, torna-se um ativo participante do movimento nacionalista de Bengala, o Swadeshi, escrevendo canções que desafiam o poder britânico. Em 1917 protesta contra a detenção e tortura de prisioneiros políticos e lê sua "Oração da Índia" no Congresso Nacional Indiano. Em 1919, renuncia ao título de Cavaleiro britânico em protesto contra o massacre de Amritsar, em que o governo atirou sobre a população desarmada.
Se em termos políticos, sua atuação é marcada por esses sucessivos protestos, no campo da cultura participou da Renascença Indiana ó um movimento cultural que reuniu diversos artistas e intelectuais em Calcutá na primeira década do século XX interessados em recuperar diferentes aspectos da tradição cultural indiana, nas mais diversas áreas artísticas.
Cumpre caracterizar, portanto, o esforço desses artistas indianos em romper com os cânones estéticos da arte ocidental impostos pelos ingleses, buscando inspiração no passado da própria cultura indiana para construir uma nova "civilização", para usar seus termos. Pintores envolvidos neste movimento, como Nandlal Bose e o irmão de Tagore, Abanindranath, buscaram inspiração temática na mitologia e nos textos clássicos indianos, tendo experimentado técnicas dos afrescos e miniaturas do passado indiano, incorporando também elementos persas, chineses e japoneses. Contrapondo-se à auto-depreciação dos próprios indianos e à falsificação do gosto estético e dos valores autóctones, escritores envolvidos com esse movimento salientaram a necessidade de libertar-se dos modelos impostos, afirmando que "para apreciar nosso próprio passado artístico em seu valor correto, devemos nos libertar de toda sujeição à visão estrangeira e ver nossa escultura e pintura (...) à luz de sua própria intenção mais profunda (...)". ( GHOSE, Aravind . 1918-1921 ) .
No artigo intitulado "The Religion of an Artist" ( TAGORE, 1984 ), o autor de Gitanjali fala de seu desenvolvimento como escritor. Afirma que ao começar a escrever poesia tinha os autores ingleses como modelo. Mas, apesar dessa influência européia, sua versificação, vocabulário e ideais eram mais livres do que os impostos pelos cânones ocidentais. Sua família colocou-o em contato com a obra de Bankimchandra Chatterji, autor que libertou a literatura bengali da rígida retórica e dos ornamentos que a aprisionavam. Ainda cedo, conheceu também os antigos poemas vaishnavas ó dos devotos do deus Vishnu ó que o sensibilizaram por sua liberdade métrica, beleza formal e musicalidade. Veremos como o ímpeto devocional de Tagore conduziu-o a aproximar-se dessa tradição poética e musical, que tomou como ponto de partida para a criação de seus cânticos devocionais ( kirtans ).
É sabido que Tagore criou um estilo musical inconfundível, o chamado "rabindra-sangita". Tal estilo possui o selo inconfundível de sua personalidade, tendo na relação intersemiótica entre poesia e música um aspecto central. Na obra de Tagore, poesia e música encontram um equilíbrio perfeito, complementando-se uma à outra, como observou Partha Ghosh (GHOSH, P. 1994 ). Neste sentido, o estilo de Tagore diferencia-se da música clássica hindustani, em que as palavras tem comumente um papel subsidiário e por vezes até irrelevante, já que os improvisos vocais em estilo melismático e ornamentado podem até tornar o texto incompreensível. O menino Rabindra, cresceu numa atmosfera musical, sendo sua casa freqüentada por músicos famosos, representantes da chamada música clássica indiana, a tradição musical urbana que remonta às cortes do período muçulmano. Músicos clássicos famosos como Sri Kontasinra e Vishnuram Chakraborty foram tutores de membros da família Tagore, e como já foi observado por Partha Ghosh, o estilo tradicional chamado "dhrupad", deixou sobre Rabindra uma impressão profunda e duradoura.
Tagore utilizou mesmo a estrutura formal do dhrupad em algumas de suas canções. Na canção "Aji bohichhe basanta pabana", como salienta Ghosh, segue a estrutura formal do dhrupad , que consiste em quatro partes : as primeiras linhas, chamadas sthayi , constituem um tipo de refrão que expressam a idéia condutora da canção. A segunda ( antara ) e a quarta ( abhoga ) assemelham-se uma à outra e são relativamente tensas, erguendo-se aos agudos. Já a terceira ( sanchari ) é novamente suave e consiste numa improvisação no estilo.
Essa é uma das estruturas formais mais antigas que se conhece na música clássica indiana. Ela aparece nas canções ( prabandha-s ) de Jayadeva, poeta místico da corte do rei Lakshamana Sena, que escreveu no séc. XII em sânscrito o celebrado Gita Govinda, ópera alegórica que representa os jogos de amor entre Krishna e Radha.
O mesmo sentimento devocional encontrado na obra de Jayadeva, aparece nos kirtan-s, cânticos devocionais vaishnavas de Bengala. Os kirtan-s tiveram origem no movimento popular religioso ocorrido em Bengala no séc. XVI, que teve Sri Chaitanya (1485 ó 1533) como figura central. Supõe-se que tais cânticos tenham se desenvolvido a partir dos cantos budistas que o precederam, bem como do "Gita Govinda" de Jayadeva. A subdivisão em quatro partes dos kirtan-s é, sem dúvida, uma herança recebida da estrutura do prabandha do estilo dhrupad.
Tagore sentia-se atraído pelos místicos poemas vaishnavas, tendo aos 17 anos tentado escrever poemas semelhantes. Mais tarde, escreveu um livro de kirtan-s musicados. Escolhi o kirtan nº 549, que compõe sua obra "Rabindronath-krto Bijoybin-as"para analisar aqui porque trata de um assunto tradicional, que veremos também numa canção baul: o corpo como morada do espírito, da energia cósmica ( prana ).
Como numa canção em estilo dhrupad, seu kirtan possui quatro partes, sendo a primeira um refrão que carrega o motivo central da obra. O texto cantado diz : "O meu ser tem energia e todos a recebem". A segunda parte, todavia não se afasta muito da primeira, podendo ser considerada uma variação da mesma, ao contrário do que ocorre num dhrupad. O texto levanta a questão : "por que fazemos peregrinações?" É na terceira parte que a melodia alcança a região mais aguda e o momento de maior tensão, coincidindo com o momento em que se diz : " não ouça a gritaria, volte hoje para sua terra e cante a sua mensagem". Na quarta parte, que é uma variação melódica da seção anterior, o autor conclui : "a morada de Deus está dentro de nós". Vemos assim que Tagore utiliza um esquema formal herdado da música clássica hindustani, mais precisamente do estilo dhrupad ó um legisigno, se quisermos utilizar as categorias de Charles Peirce e compreendê-lo como um signo em relação a si mesmo - mas não se prende completamente a ele, sendo capaz de utilizá-lo de um modo pessoal.
Do mesmo modo, uma análise da estrutura melódica revela que o compositor-poeta, tomou a Raga Pilu como ponto de partida para sua elaboração melódica. Na tradição da música clássica indiana, as ragas são conceitos que implicam tanto a escala quanto o desenho melódico característico, a ornamentação, a hierarquia das notas e o uso de vibrato para produzir notas alteradas. Algumas ragas são identificadas pelo contorno melódico, outras pela escala utilizada, outras ainda teriam uma clara hierarquia das notas ou um registro característico; mas uma vez estabelecida a raga, ela serve como suporte para as improvisações e para a composição de uma canção. Bonnie Wade salienta que "os músicos hindustanis gostam de combinar duas ragas a fim de obter uma diferente" ( WADE, B. 1994. 75p.) Isto é o que ocorre com as ragas de nomes duplos, como a Bhimpalasi ou a Ahir-Bhairav, em que o tetracorde inferior provém de uma raga e o superior de outra.
Tagore todavia, diferencia-se dos representantes da música clássica indiana por utilizar em suas canções as ragas hindustani e karnáticas, ou seja, das duas tradições clássicas indianas, de um modo muito livre. Algumas vezes, combina duas ragas, como na canção "Hemonte kon bashonteri bani", em que utiliza as ragas Bihag e Khambaj, mas na maioria dos casos utiliza as ragas sem se prender a todas as suas características, podendo acrescentar notas que não fazem parte da escala ou ornamentos específicos.
No kirtan já mencionado, a melodia está baseada na raga Pilu ó utilizada apenas na seqüência ascendente ( arohana ). Apresento a seguir a raga acima e a estrutura melódica criada por Tagore.

Rag PiluArohana -ëN S G M P N D P Sí 
  Avarohana ó Sí N D P D P M G R S Ní S
Rag de R.T.Arohana - ëN S G M P D P Sí 
  Avarohana ó Sí N Sí N D P G M P M R S

 Vemos assim que Tagore utiliza-se do contorno melódico da raga Pilu em sua seqüência ascendente, mas cria um outro contorno melódico na seqüência descendente, utilizando outras notas ( o dha shudha, 6° grau não alterado, ao invés do dha komal, 6° grau alterado da descida da raga Pilu e acrescenta o ni komal,N na sua descida). Aproveita, assim, o acento não escalar da raga Pilu, criando outras curvas ( vakras ) não existentes na raga original. Suponho que ele tenha buscado, desse modo, expressar musicalmente o sentido do texto cantado.
Em termos rítmicos, o compositor de Bengala utiliza a estrutura tradicional da música clássica indiana, a tala, termo sânscrito que significa tanto o sistema métrico quanto os ciclos rítmicos utilizados. Cada tala possui um determinado número de tempos que completam um ciclo que se repete e também possui um padrão interno de organização das partes que compõe o ciclo rítmico. Tagore utiliza nessa canção uma tala de 6 tempos chamada dadra que é realizada pelo percussionista que acompanha o cantor na tabla (instrumento de percussão da música clássica do norte ). Essa tala está associada ao estilo dadra, outro gênero vocal considerado "light classical", cujos textos românticos se referem aos jogos amorosos de Krishna. Por isso, creio que seja possível considerá-la um símbolo desse gênero vocal que fica entre o clássico e o popular. È interessante verificar que muitas canções do rabindra-sangit utilizam essa tala, sugerindo que o estilo de Tagore também ficaria neste espaço do "light classical", em que as melodias nem sempre são compostas numa raga específica ou em que os cantores e os compositores podem quebrar as regras da tradição clássica indiana. Seria esse o lugar do "rabindra-sangita", entre o clássico e o popular, para os músicos indianos ? Talvez Tagore, com seu individualismo, não se enquadre muito bem nos espaços tradicionais numa cultura que tende a transformar seus signos em legisignos, em signos convencionais.
Gostaria de observar que o tipo de inovação introduzida por Tagore em suas canções teve como base os conceitos da música clássica indiana. Ele utilizou os conceitos de raga e tala, que são a base da música clássica do norte e do sul, ainda que tenha reduzido as ornamentações ó tão presentes no estilo khyal da música hindustani ó e utilizado as ragas de um modo pouco convencional, escandalizando os dogmáticos.
O autor de Gitanjali certamente escandalizou a elite letrada de Calcutá ao voltar de Silaydaha, aldeia agora em Bangladesh, onde ficavam algumas terras de sua família, em que entrou em contato com a música dos bauls pela primeira vez. Os bauls, místicos cantores errantes de Bengala que desprezam as riquezas materiais e se opõe ao sistema de castas, não eram muito bem vistos naquele tempo por parte da elite bengalesa.
Enquanto Calcutá, capital da província de bengala e da Índia Britânica, era um centro de música clássica instrumental, as áreas rurais mantinham os estilos folclóricos da região : o bhatiali dos barqueiros, o bhaoyayia dos que conduzem os carros de bois, os kabigans e jarigans dos repetistes hindus e muçulmanos e os baul-gans dos dançarionos-músicos errantes. O fato das canções folclóricas bengalesas terem sobrevivido à investida da música clássica revela a profundidade, variedade e diversidade dessa tradição popular. Ainda que algumas influências da música urbana se façam notar na música folclórica bengalesa, a maior parte da tradição autóctone sobreviveu nas áreas rurais com toda a sua variedade e riqueza.
As canções dos bauls são compostas por músicos errantes e filosóficos, inspirados por ensinamentos sufis e pelo amor incondicional dos Vaishnavas. Assim, freqüentemente lidam com o amor entre a personalidade humana e um deus pessoal, compreendido como um deus interno que habita o âmago de cada indivíduo. C. Capwell acredita que "a tradição baul seja uma fusão de elementos do budismo, do shaktismo 9 crença dos adoradores da deusa Shakti, símbolo da energia do universo ) e do sufismo, tendência mística do Islã" (CAPWELL, C. 1986).
Pouco se sabe do passado dos bauls e de como desenvolveram sua visão de mundo tão avessa às ortodoxias do islamismo e do hinduísmo. Suas canções começaram a ser coletadas no começo do séc. XX e Tagore foi um dos primeiros escritores a reconhecer a beleza e inspiração dos versos bauls. Em sua juventude, Tagore conheceu Lalon Fakir, um dos maiores expoentes dessa tradição, sendo influenciado pela filosofia e pelo caráter da música dos bauls. Muitas de suas canções foram mesmo classificadas por musicólogos como sendo baul-gans ( canções baul ) e em muitas de suas peças teatrais há um personagem baul, colocado como um homem de visão clara e profunda que sabe expressar o que vê e criar metáforas a partir do cotidiano, falando do "rio da vida", do "mercado do mundo" ou do corpo humano como "uma majestosa casa em declínio".
Na canção "Loke bóle", composta por um baul do séc. XVI chamado Hasan, é dito no refrão : "As pessoas reclamam que não tenho uma casa bonita, mas como se pode construir uma casa no vazio ?". O conceito do vazio, comum às tradições hindu e budista, é utilizado aqui para demonstrar a superficialidade das preocupações materiais> Musicalmente, quatro pequenos motivos melódicos são entrecortados por pausas, ícones do vazio mencionado no texto. Há aqui uma relação de similaridade entre o signo musical ( as pausas, a ausência de som ) e o objeto representado ( o vazio ). A linha melódica alcança seu ápice mais agudo justamente quando a palavra "sunnero" ( vazio ) é pronunciada, o que realça a importância desse conceito para o compositor-filósofo.
Na terceira parte da canção, Hasan pergunta : "Quantos dias posso morar numa casa construída ?" e observa: " Vejo no espelho que meus cabelos estão ficando brancos". A mesma idéia é assim recolocada : já que o corpo envelhece, não há razão para se acumular bens materiais. Mas a casa bonita pode ser compreendida também como metáfora do corpo humano e é por isso que na quarta parte da canção é dito que Hasan não construiu sua casa, mas meditou e se perguntou: "Aonde Alá vai me levar ?"
Na Quinta e última seção, Hasan diz que se soubesse quanto tempo viveria faria uma casa muito bonita. Mas ele não sabe e assim volta ao refrão inicial. A possibilidade de mudança, de viver numa casa bonita, é representada musicalmente através de uma variação do ritmo da melodia que quebra o anterior e traz um maior movimento rítmico, com figuras de duração mais curta. Temos aqui outro ícone, na medida em que compreendemos essa quebra rítmica como um signo que opera por semelhança o significado do texto verbal.
A canção baul segue um esquema formal semelhante ao utilizado por Tagore em seu kirtan. O refrão inicial, reaparece ao final de cada estrofe, sendo as estrofes divididas em duas frases; a primeira fica no tetracorde inferior da região central da voz, enquanto a segunda se ergue para a região aguda de onde desce para retomar o refrão inicial, que funciona aqui também como um motivo condutor. A estrutura melódica não se baseia em nenhuma raga codificada pela tradição da música clássica, mas pode-se dizer que utiliza a escala khamaj, codificada no séc. XIX por Bhatkande, que equivale ao modo mixolídio do sistema medieval europeu.
A proximidade entre o kirtan de Tagore e o baul de Hasan não é apenas estrutural. Salta aos olhos a afinidade filosófica entre os versos cantados. Se Hasan fala da transitoriedade da vida e da impossibilidade de se construir algo sólido sobre o corpo e a matéria, Tagore complementa o pensamento revelando o que há dentro desse corpo: prana, a energia de vida. O conceito paradoxal do vazio pleno pode ser deduzido a partir das duas canções.
Podemos concluir então que em seu questionamento da civilização que emanava da Europa, Tagore encontra outros modelos, outras concepções que recria dando sua marca pessoal. Desmistifica a dita "civilização" e a razão colonizadora, desafiando a modernidade ocidental como locus de enunciação da cultura e do saber. Mostra-nos assim, uma outra sabedoria, mais antiga e profunda do que a dos conquistadores europeus.
 

Bibliografia
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